22 March, 2007

caixinha d'água


De tempos em tempos um vazio extremo me inunda tudo por dentro , corroendo feito ácido os meus melhores móveis. Chega lento, lambendo postes, tomando conta da rua e ocupando espaços de dentro cuidadosamente ignorados. Fazendo por vezes, emergir, sobras de uma dor mais antiga. As carências? batem pelas canelas, enquanto as fotografias do que se deseja boiam ao redor das saias, alcançam os quadris e grudam as coxas há muito não habitadas.
Da sala ao quarto, nada restou inteiro; o que antes era forte-mogno parece tão frágil, que um sopro de vida lhe carregaria a existência toda pelo chão, escrava que é dos olhos que lêem nos contornos sua antiga natureza. A bagunça dessa desconstrução reverbera em sentidos confusos, feito gota quebrada se espalhando no ar. O nulo se esgueira pelas frestas das portas e cauteriza pequenos machucados, esverdeia as cascas. Torna tudo distâncias, mágoas, nojos. Vida e morte irritantemente em excesso, e minha decência sequestrada por uma autocensura digna de Terceiro Reich.
Fui eu quem causei esse tumulto, eu quem desmantelei essa enxurrada que eu não pude conter. Nem poderia, sendo ela sábia para meu lidar com as coisas. Abri os portões e deixei que ela assolasse minhas populações inteiras, fizesse uma limpeza étnica feito um Nero louco, incinerando tudo que fosse vago, feio ou fraco. E na confusão desse fogaréu, acabei por queimar até o que tinha valia, empolgada que estava pelo salpicar de brasas. Altas, altas, labaredas! Mãos gigantes comiam cada pedaço dos meus laços, das minhas certezas tão fracas. Aos poucos, instalou-se o vazio satisfeito da extinção e a estranha sensação de leveza, que é também solidão. Cinzas e azuis de um mundo antes multicolorido, aquele carnaval agora morto.
Enquanto me lavava dos gritos que ouvia, do remorso que já percebia calar em mim, um desejo de purificação aconselha o corpo a ir junto dessas águas, para o meio do redemoinho, acabar-se. É a saga do heroí, a redenção. Lanço-me em minha armadilha e afundando vou até lá embaixo, nos corais, sentindo cada tapa virando alga; a minha própria Paixão. A areia fina nos pés e um corpo morno no fundo, a sarjeta. Bambuzeando e esperando, quem sabe, um Jack congelado que me guie a mão para desenhar melhores palavras...ou ainda, esperando achar minha própria Ametista, a pedra dos regidos de Aquário. Nada disso houvera; virei mar, como o mar onde me afogava.
Achatada pelas tantas outras ondas, seguindo uma consciência agora externa ao meu querer. De um todo, uma mera parte. Movimentos sensuais, leves dedos, para cima e para baixo, girando, girando.. Um turbilhão se forma, sem que eu saiba para onde, enroscando-nos umas às outras forçosamente, puxadas pelos cotovelos a tomar parte pelo desconhecido. Entre as espumas, finalmente, vejo-o rumo à secura incendiária que causei outrora.. O azul, agora, contra o cinza.
Lançava furiosa contra a terra seca minhas costas d'água, pancadas de plasticidade violenta, lama e ressurreição. Engolia cada partícula seca, e cantava: "Sobe-desce-e-chove, sobe-desce-e-chove, sobe..". A fé culpada adoentando e teleguiando aquela missão, e sim e sim e sim, e mais, mais..O calor das minhas preces fervendo o que era água. Enfim minha voz Naquilo tudo.
Pude sorrir,e fez-se chuva em meu perdão. Vinda da terra, rumo aos Céus. É o meu chão que chora, o meu céu quem ama. E liberta do crime, meu mar desfaz-se em gotas e me caio ao céu. As naturezas se confundem e viram uma só: a minha. Nuvens de pedra, ondas de vento, pássaros de poeira e certeza de porra nenhuma. "Minha fraqueza é meu freio, mas meu freio é água"... E depois que essa tormenta passa, volto a plantar o que essa fúria devastou, e um outro ciclo começa; o céu volta a ser céu, e a terra volta a ser terra. As raízes se acomodam, e as músicas acontecem mais uma vez. A bendita calmaria. As outras cores retornam, ainda que somente uma demão. Aos poucos, as vidas vão reocupando seus lugares, mais fortes, mais sabidas. Conscientes que são,agora, dos intempestivos da terra que é seu lar.
Quisera eu poder gelar cubos de danone feito picolé e chupar tudinho, fazendo pouco dessa dor nephélica. Mas não tem jeito. Fui eu quem ninei, acolhi e viciei essa tragédia em mim. Porque eu preciso dela para viver. Para não achar que posso tudo, pra não seguir atropelando às tantas essências alheias à minha, como minha bonança costuma fazer.
Enfiando facas flamejantes, rodopiando pelos salões feito serra elétrica, zombando tudo pela metade. Um exagero de minha parte, grande que sou no que me couber. Desnecessária caça às bruxas,onde a bruxa sou eu. Malvada e sozinha, mas feia e mágica. Voando, mesmo que numa vassoura, e tecendo as novas tempestades que virão. Mas também jogando pragas coloridas nas cidades que erguirei, e cuidadosamente, guardando afetos no meu berço de Cristal.