06 November, 2006

Bolhas de cimento



Não que seja novo ou especial. Como um velho penteado, o refazia sempre, a cada passo que dava. Mexia os cabelos, os peitos e os dentes calçada afora, coração adentro. Circulava pelas ruas alheia, não era nem nunca fora como um deles...
Mas numa quarta-feira chuvosa, lembrou-se de olhar pela janela, e o que viu a fez abrir muito os olhos. Viu o mundo. O sol que nem habitava numa fortaleza de ações. Viu vidas. Viu dentes. Já os sabia ali existindo desde sempre, mas agora era diferente.. eles eram.. pessoas. Não mais os animais de outrora. A calçada de antes era doída, como que habitada por penumbras. A única existência válida era a Dela. Os outros eram somente isso, corpos. Enxergava-os como engrenagens e sistemas de excreção, nervos e salivas. Digeria cada movimento de uma maneira ácida, sempre tão próxima do ridículo, o maxilar travando de nojo de todos esses coitados que não se sabiam assim. Sentia como se percebesse algo que os outros não viam, justo ela que tanto falava sobre não-sacralizados..Era doente, com certeza. Essa Maldição de Deus a tolhia de simplesmente ser. Em locais com música a sensação piorava...vê-los dançar trazia-lhe aos olhos uma lembrança tribal, uma selvageria coreografada como Tempos Neandertais na memória do Cosmos. Mas a certeza de se saber tão macaco quanto todos a puxava de volta à essa realidade , da qual ela sempre fizera parte. E não tentava fugir, nunca tentou. Lutava com todos os ossos para se ver livre dessa prisão de decifrar gestos como quem destila água. Queria se juntar ao resto da tribo. Pintar as carnes e dançar em torno do fogo, se possível. Afinal, sua natureza era essa. Simiesca e suja... não era? E seguiu na mesma calçada, com todas essas sentenças pesando em seus ombros por muitos anos. Usando-os mesmo que sem querer, pois não sabia tratá-los feito iguais, tinha os olhos sempre tão regados de piedade...justo ela, que já aceitara tantas penas. Queria amá-los, tê-los nos pêlos em memórias arrepiadas de fé. Mas o fato de serem assim como eram os fazia ocos de possibilidades. Ela assim como era. Não totalmente vazios, mas sempre distantes. Só não eram um nada pela esperança dela de um dia ser exatamente assim.. de entender todo esse complexo universo de grades que ela construiu em torno de si.E decidiu. Forçou-se então, juntou-se e comeu como eles, forjou a normalidade que pretendia e disfarçou as ânsias dos dedos. Chegou-se em alguns, cheirou à outros, e o passado que a construira foi sendo digerido lentamente enquanto percebia de onde vinha todo esse ranço dos humanos...Apertou o passo porque neblinou, nessa calçada que ela ainda estava, cercada de passos e alguns carros, porque agora ela era uma pessoa. Ela que escrevia livros silenciosamente, pôde finalmente usar a primeira pessoa. O feminino. Pôde fazer contos urbanos sobre pessoas. Pessoas, pessoas. Repetia isso agora como uma prece enquanto andava, como que agradecida das existências. Sorria para alguns, volta e meia com resquícios de pena. Mas não adiantaria, talvez esses alguns realmente a merecessem. E andava para onde queria chegar. E chegaria, sim, sim. Demorasse os mesmos muitos anos ou acontecesse de repente. Aprendera com a pele dos homens e seus colágenos que não existia o tempo. Tudo que houvera fora e seria. Diferentes mas ligados, para sempre. Era hora de atravessar a estrada.